Sigmund Freud

Sobre Sigmund Freud

"Cristo morreu, Marx e Freud também, e eu mesmo não me sinto lá muito bem." Que aura teria o homem de barba branca, estilo burguês e um charuto por gadget? Que mistérios sobre a condição humana detinha o médico vienense (O Mal-estar na Civilização, 1930) que fez dele persona non grata junto da Igreja, dos filósofos e políticos do seu tempo e dos especialistas das ciências sociais e humanas? Os seus livros chegaram a ser queimados na praça pública; em Portugal, o prefácio de Três Ensaios Sobre a Sexualidade (1932) vinha com uma advertência semelhante às dos maços de cigarros atuais. Em vez de "fumar mata", o salazarista José Osório de Oliveira defendia que a obra escandalizava a alma lusitana.

O que a caixa de Pandora continha, sabe-se hoje – quase um século depois –, era o oposto do sexo. "Eles não sabem que lhes trago a peste", terá confidenciado o subversivo Sigmund ao seu discípulo Carl Jung, quando acostavam na América, perante a multidão que os aclamava.

A "peste" espreita-nos todos os dias, em pensamentos, atos e omissões; assola-nos nos momentos de stress, quando ficamos neuróticos ou deprimidos (a depressão atinge níveis pandémicos na sociedade da abundância). "Freud vem dizer que a inclinação para a agressão faz parte da identidade humana e é a fonte do mal-estar civilizacional, nunca se referindo à sexualidade 'na cama'", elucida Gabriel Pereira Bastos, 63 anos e professor de Antropologia e Psicanálise na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.

Então porque vemos Freud onde supostamente não está? Porque associamos livremente o seu nome a sexo e este ao divã (nos filmes, romances, anedotas e conversas de café)?

A psicóloga clínica Isabel Empis, 57 anos, aponta o dedo às "interpretações selvagens" que alastraram na sociedade, adulterando a mensagem original. No prefácio do seu livro Bem Aventurados Os Que Ousam (ed. Palavra), condena a divulgação maciça dos conceitos freudianos e a sua aplicação direta à vida quotidiana: "Usam o jargão psicanalítico para julgar e agredir o próximo – 'tu és um castrado', 'isso é o teu Édipo' ou 'tens uma fixação no teu pai'."

Academicamente falando, a libido não tem a ver com sexo propriamente dito, antes com uma pulsão que se manifesta desde a primeira infância e atravessa diversas etapas de desenvolvimento. A leitura é feita pelo psicanalista Frederico Pereira, 55 anos, ex-
-presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e atual diretor do Instituto Superior de Psicologia Aplicada. O catedrático lembra que o ícone do século XX estava à frente do seu tempo, até na interpretação que fazia da homossexualidade (1905), "que, longe de ser um desvio ou doença, era uma singularidade que importava compreender, dar significado".

De significado se trata quando se fala de psicanálise, um encontro consigo mesmo, testemunhado quatro vezes por semana no divã de um analista empático que ouve e não se envolve.

A célebre "terapia pela fala" foi inventada numa época em que a psiquiatria organicista entendia a histeria como doença das mulheres – apenas elas tinham histero (útero) que, alegadamente, ficava aos saltos. Quando Freud anunciou que os homens também padeciam desse "mal", a sociedade médica vienense desqualificou-o. Estas e outras ousadias levaram a que fosse condenado em vida, "tendo sido declarado morto várias vezes antes de morrer", frisa Frederico Pereira.

O estigma seria ampliado nos anos 60 pela voz dos movimentos feministas, que o acusaram de falocrático e machista (baseando-se nos estudos de Masters and Johnson, que davam a conhecer ao mundo a anatomia e função do clítoris). Na década de 80, marcada pela euforia do sexo, o "diga a primeira coisa que lhe vier à cabeça" banalizou--se e Portugal entoava o refrão da cantiga de Sérgio Godinho: "Eu sei, eu sei, Freud explica (...) se eu fosse a ti Segismundo, não teria vindo ao mundo, pra nos fazer vir a nós".

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Na cultura popular, o uso e abuso do sexo terá uma explicação científica. Ironicamente, o pai da psicanálise decidiu praticar a abstinência após o nascimento dos seus seis filhos, como medida de controlo de natalidade. Para os "psis" com tradição analítica, a sexualidade banalizou-se (ao ponto de se discutir quantas vezes se deve fazer) e é usada como arma de arremesso ou antídoto falível para afugentar o mal-estar.

Pedro Luzes, 65 anos, presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, traz a lume a caricatura da crise instalada no admirável mundo da liberdade sexual. "Antigamente as mulheres eram tidas por assexuadas. Agora cai-se no outro extremo, como o caso de uma paciente estrangeira que, chegada ao meu consultório, insistia ser preciso despir-se para eu a conhecer bem, começando a fazer o seu strip. Parou quando reformulei a sua tese, dizendo-lhe que estava preocupada em demonstrar-me a sua 'inveja do pénis'."

O autor de 100 Anos de Psicanálise (ed. Almedina) admite erros de simplificação, quando alguns conceitos são transpostos para leigos, mas considera que certos mecanismos parecem claros ao cidadão comum. "O paciente que se enamora do médico e vice-versa (transferência), o homem que tem medo do patrão porque temia o pai (projeção), aquele que corre atrás da mulher fatal (conflito edipiano)."

Dos romances queirosianos à novela Dei-te Quase Tudo, passando pelo lendário The End, da banda Doors (1967), é possível revisitar o tabu do incesto, dissecado no controverso Totem e Tabu (obra sobre o papel do "complexo de Édipo" na origem da civilização). A origem de expressões triviais como "filhos da mãe" esfuma-se nos sinais do tempo. Essa "mãe desfamiliarizada", esclarece Gabriel Pereira Bastos, "com quem todos podem dormir sem culpa, uma fantasia descrita no artigo de Freud O Romance Neurótico das Origens (1909)".

Volta, estás perdoado
Ao dobrar o novo século, um Freud renascido das cinzas chegaria à conclusão de que estava certo. A insustentável leveza da sociedade atual, incapaz de se dar tempo para explorar a sua caverna de Platão e encontrar a saída, resultou na negação cega de qualquer mal-estar (pulsão de morte) e na crescente fuga para a frente. Tendências destrutivas, exibição ou colagem a símbolos de poder (arsenal bélico, carros, mansões, aparecer na TV, em revistas cor-de-rosa ou ao lado de alguém influente) e a sexualização de tudo resumem-se, à lupa freudiana, a óbvios e compulsivos mecanismos de defesa. O tempo deu-lhe razão. O sexólogo Júlio Machado Vaz, 56 anos, autor de O Sexo dos Anjos, revisitou o baú de Sigmund e descobriu, com "amarga consciência", que As explicações Sexuais dadas às Crianças se mantêm, infelizmente, atuais, persistindo sem resposta a questão colocada na carta aberta que Freud escreveu em 1907: "Que se pretende quando se deseja esconder às crianças explicações sobre a vida sexual dos seres humanos?"

Mas a ciência contrariou-o. Consumou a perda de universalidade do complexo de Édipo (o "pecado original", abordado na antropologia das sociedades tribais) e minou a teoria do inconsciente (formado por impulsos agressivos e sexuais), ao exigir que fossem executados, seguindo o formalismo do método experimental, os protocolos científicos que a validassem.

Hoje, são cada vez mais os clínicos de outras correntes terapêuticas que lhe apontam lacunas. Rui Pedro Borges, 45 anos, psicólogo sistémico, aponta três revoluções que Freud simplesmente atirou para debaixo do tapete persa: "O modelo evolucionista de Darwin (as variáveis externas à psique), o princípio da relatividade de Einstein e a teoria da Gestalt (conceção humana relacional e grupal, além de psíquica)."

Ó doutor, deixe lá isso!
Talvez Freud nunca tenha conseguido perdoar em vida aos seus – igualmente subversivos – seguidores, por terem revisto o seu modelo. Juliana Estevez, 28 anos, psicoterapeuta corporal, relembra duas traições: "Wilhelm Reich defendia que a repressão sexual era a base dos males do corpo, sendo por aí que a cura devia começar; Carl Jung inspira-se nas filosofias tântricas e no estudo de religiões para formular o conceito de inconsciente coletivo e redefinir a libido, que ganha forma espiritual."

Hoje, Freud teria de admitir que os seus ensinamentos suscitam grande adesão por parte da indústria de entretenimento. O homem que um dia abandonou a sala, após questionado, pela assistência, sobre a relação que mantinha com o charuto, poderia ser o primeiro, hoje, a assumir que talvez não se sentisse lá muito bem com a adulteração das suas ideias.

Como chegou a ser consultor de filmes como Lulu (do alemão G.W. Pabst), talvez viesse a contemporizar com as excentricidades cinéfilas de Woody Allen (que coabita com a filha adotiva fora da tela). Talvez tivesse de fazer as pazes com o país de Clinton (outro aficionado dos charutos). E se visitasse Portugal? Nós por cá ainda não falamos muito de sexo mas não rejeitamos "a peste", como é moda agora nos Estados Unidos. E temos o costume de romancear o mal-estar com a palavra "saudade".

Clara Soares, Visão n.º 686, 2006-04-27