Entrevista com Rui Aragão Oliveira
Tema principal: Os sonhos
Os sonhos são a voz do inconsciente?
A questão dos sonhos é recorrente para muitos autores, mas Freud foi a primeira pessoa a falar deles como uma expressão do inconsciente, no sentido em que são uma espécie de via-rápida de acesso a essa mesma expressão. Podemos controlar uma parte consciente do nosso pensamento, quando fazemos afirmações do género "eu quero chegar a horas", ou "proponho-me fazer isto". Mas quando dormimos a nossa consciência é mínima e, portanto, não temos a capacidade de escolher o nosso sonho. No entanto, há qualquer coisa que se manifesta em termos mentais, mesmo que não seja através da linguagem ou de atividade física concreta, mas apenas num plano do imaginário. E o sonho é a expressão disso mesmo.
Como um filme que vai passando?
Exatamente.
E que significados podem ter os sonhos?
Num primeiro momento, Freud pensou que o sonho seria a expressão de um desejo de natureza inconsciente, e isso também foi devido às características iniciais do tipo de patologias que apareciam. No plano mental, não conseguimos dizer que temos sentimentos eróticos ou agressivos para com alguém. Reprimimos isso inconscientemente...
Todos reprimimos, nomeadamente em relação à agressividade...
Exatamente, e se assim não fosse, a certa altura, já não conseguíamos funcionar. Viveríamos numa atividade pulsional, como os bebés, que têm ainda uma organização insuficiente a vários níveis, nomeadamente de pensamento. Vivem consoante a satisfação da pulsão naquele momento: "eu quero, logo não consigo esperar". Seria uma coisa de uma volatilidade muito grande, mas vamos conseguindo organizar-nos de outra maneira, felizmente.
Pode haver o perigo de reprimir demasiado?
Podemos ter algum controlo no processo. A repressão também significa desviar essa mesma pulsão para outras coisas. Como na fábula da raposa que está de um lado do rio e deseja as uvas que estão no outro. Mas, depois, quando percebe que não as consegue alcançar, faz inconscientemente o processo e acaba por se convencer de que estão verdes, e contenta-se com outras que estão mais perto. Que, afinal, pensa, também são muito boas. Portanto, podemos canalizar a frustração e satisfazer a pulsão de outra forma, através daquilo a que chamamos técnicas de pulsão parcial.
Depois, o sonho foi considerado de outra forma?
O sonho condensa uma série destas questões. Primeiro é a expressão de um desejo. Depois Freud começou a ver que havia sonhos que não apareciam desta forma, nomeadamente em relação aos sonhos de guerra e aos sonhos recorrentes. Quando a escola psicanalítica começou a tratar outro tipo de pacientes, apareceram algumas questões desta natureza. Embora parcialmente pudesse fazer sentido, a certa altura a ideia inicial começou a não explicar estes sonhos. O que é natural acontecer à medida que a ciência avança. Temos um modelo explicativo para um tipo de fenómenos, depois surgem outros quaisquer a que o modelo não se aplica, e vamo-nos ajustando. O mesmo aconteceu com a ciência psicanalítica.
Até porque, entretanto, passaram 150 anos.
Exatamente, e muitas coisas aconteceram, nomeadamente em termos de conhecimento da neurologia e das neurociências, que também deram alguns contributos importantes neste campo. Mais tarde, Freud alterou radicalmente a sua posição. Quando fala na ideia da pulsão de morte, por exemplo, não tem exatamente a ver com o desejo de morrer.
Tem a ver com quê?
Com uma espécie de retrocesso. Em última análise, seria uma espécie de estádio anterior ao conflito, à tensão e à ansiedade interna criada num determinado momento. Portanto, aquilo que normalmente designamos como pulsão de morte é associado a uma ideia de estabilidade. A pulsão de morte é relativa à pessoa que tenta organizar-se para a não-mudança, manter o que tem, para que não haja a mínima alteração na sua vida; é oposta à pulsão de vida entendida, no dia a dia, como uma espécie de vivacidade daqueles que se empenham, que investem, que têm a ânsia de criar coisas novas, mesmo ao nível interno. E isto não tem só a ver com o desejo de natureza sexual. Pode ter a ver com outro tipo de questões.
A rigidez associada à pulsão de morte é típica de um perfil psicológico específico?
Há pessoas em que a ansiedade e a pulsão de morte são mais evidentes. Mas podemos dizer que as duas pulsões básicas, de vida e de morte, estão sempre mais ou menos presentes em todos nós. Em certo tipo de circunstâncias, uma delas pode tornar-se mais evidente do que a outra. Todos temos pequenas oscilações, havendo alturas em que nos sentimos muito criativos, cheios de entusiasmo e de atividade, e outras alturas em que nos apetece a estabilidade. Mas o predomínio de uma sobre a outra é que nos pode levar a falar de quadros de um outro nível, ou seja, de natureza psicopatológica.
Voltando aos sonhos...
Entre outras coisas, Freud começa a perceber que havia sonhos recorrentes, nomeadamente a seguir à Grande Guerra, em que lhe aparecem muitos casos com traumas de guerra. Ao observar que essas pessoas tinham sonhos recorrentes pós-traumáticos, apercebe-se de que eles não podiam ser apenas a expressão de um desejo. Se assim fosse, significaria que esses sujeitos desejariam reviver uma situação que foi extremamente traumática. Isso veio reformular o quadro não só em termos de conceção mental, mas também quanto à utilidade dos próprios sonhos. E Freud chegou à conclusão de que os sonhos seriam sobretudo a expressão dos processos de natureza inconsciente, e não apenas de um desejo. Seriam também a expressão inconsciente de conflitos ou de ansiedades manifestas.
Que ficariam por resolver.
Nos sonhos de guerra, por exemplo, por terem sido vividas coisas internas muito violentas, com grande ansiedade e tensão, o sujeito tenta, à sua maneira, livrar-se delas, através do que chamamos sonho evacuativo. Significa "pôr fora de mim uma coisa que não me diz respeito". Mas pode também ser entendido como uma espécie de sonho de elaboração, numa tentativa de se organizar internamente face à tensão criada. O sonho funciona como uma espécie de auxiliar para pensar o que se passa connosco. Normalmente temos sonhos mistos, com uma parte evacuativa, em que tentamos ver-nos livres de uma ansiedade, mas também com um aspeto de elaboração. Na realidade, a maior parte dos sonhos que aparecem na análise psicanalítica são mistos.
Tentam integrar a tensão e o conflito.
Exatamente, e podem eventualmente resolvê-los. Os casos de guerra são situações extremas, de limite, em que se é obrigado a matar alguém, em que existe terror e sentimentos de culpabilidade. Há ainda outra situação, que é mais ou menos comum, não tem tanta violência, que são os sonhos recorrentes. Todos nós, de uma maneira ou de outra, em certas alturas da vida, já os tivemos. Mesmo que não se repitam na totalidade, o tema central é mais ou menos recorrente.
O significado fulcral mantém-se anos a fio?
Como se ficasse em aberto uma espécie de conflito e de ansiedade por resolver. No processo inconsciente, é como se o sonho tentasse resolver esse conflito. O sonho não tem um só significado, porque é expressão do inconsciente que pode conter vários significados e não tem a noção da temporalidade. Além disso, a noção dos opostos não existe. Uma coisa pode ser várias coisas ao mesmo tempo.
Somos e não somos, simultaneamente.
A questão mais complexa é que o inconsciente encerra vários significados, e o mesmo sonho pode conter várias histórias, algumas delas não muito congruentes. No processo analítico é curioso verificar que às vezes um sonho não faz grande sentido, mas se o pensarmos, começamos a descobri-lo como uma história que se vai desenrolando. E se num momento ele faz um determinado sentido, seis meses ou um ano depois, quando o recordamos, embora ainda faça esse mesmo sentido, passou a ter um significado acrescido.
Vai interpretando os sonhos conforme a sua complexidade?
Não tenho o hábito de isolar os sonhos. Integro-os consoante aquilo que vai aparecendo dentro do próprio contexto da sessão. As pessoas trazem-nos espontaneamente, ou às vezes sou eu que sugiro que os tragam para nos ajudar a pensar sobre eles. É habitual que ao longo do processo analítico as pessoas passem a sonhar mais, a recordarem-se melhor dos sonhos, o que tem a ver com o facto de estarmos a estimular, no contexto terapêutico, uma espécie de função analítica.
Nota que os sonhos se vão tornando mais nítidos à medida que a análise avança?
Sem dúvida. A elaboração do sonho vai sendo mais complexa e mais clara. É notória a facilidade crescente que os sujeitos vão tendo em usar o sonho como um instrumento. Conseguem identificar melhor a razão de terem sonhado. Começa um processo comparável ao "poder sentir". Há pessoas que têm a ideia de que não sentem nada, são emocionalmente "frias". E depois vão-se dando conta de que é impossível não sentir.
Muitos chegam à cura?
Hoje em dia, na perspetiva analítica, o processo de cura é tido sobretudo como uma capacidade de desenvolvimento mental, mais do que no sentido de acabar com uma doença. Existe doença quando a associamos à intolerância, ao sofrimento e a uma espécie de impossibilidade de mudança. Tem a ver com o que já falámos, que é a pulsão de morte, ou seja, há doença quando o sujeito se sente compelido a sentir e a atuar de uma determinada maneira, sem ter o mínimo de flexibilidade em termos mentais. Isto é sintomático da patologia.
Desenvolvemo-nos quando?
Quando conseguimos resolver alguns conflitos e encontramos alternativas que nos permitam poder tolerar e conviver com alguma dose de sofrimento dentro de nós, quando conseguimos alterar a memória de certos factos da nossa vida, embora não se consiga alterá-los. Mas podem ser recordados sem a enorme dose de ansiedade e de sofrimento dos primeiros momentos.
Como são os sonhos quando o paciente está em vias de terminar o processo analítico?
Exprimem um desejo cujo sentido se relaciona com a autonomia. De facto, há alguns sonhos que podem ser entendidos, dentro do contexto da análise, como a ideia de que o sujeito começa a ter condições de "se poder ir embora", e de poder "fazer este trabalho sozinho".
Rui Aragão Oliveira é doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de Coimbra, é psicanalista e professor no ISPA.
Ana Vieira de Castro, Xis, 2006-12-17