Entrevista com Jaime Milheiro

Entrevista com Jaime Milheiro

Tema principal: Perturbações psicológicas

Chama-lhe metaforicamente "doença do herói" e garante que é das perturbações emocionais mais frequentes dos nossos tempos. "Quem não for campeão não presta", sintetizou o diretor do Departamento de Psiquiatria do Hospital de Gaia, Jaime Milheiro, (…). O resultado desta obsessão pelo sucesso é um consumo "exagerado" de medicamentos psicotrópicos.

Todos os anos surgem 60 a 70 mil novos casos de perturbações psicológicas. É disto e doutras coisas que nos fala, nesta entrevista, Jaime Milheiro.

Público – O que é isso da "doença do herói"? Por que adoecem as pessoas?

Jaime Milheiro – As pessoas adoecem por uma soma de vários fatores. Aquilo a que chamo a "doença do herói" caracteriza-se por um desajustamento entre o que se pretende e narcisicamente se exige e o que se consegue de facto. É uma perturbação emocional. Toda a nossa cultura, de forma direta ou indireta, solicita o indivíduo a ser herói, a ter sucesso, a ser um vencedor. Quem não for campeão, não presta. Hoje, ser uma pessoa comum, com grandezas e limitações, é quase pejorativo. Criou-se uma espécie de exibicionismo e voyeurismo que assume carácter patológico.

P. – Está a referir-se, por exemplo, a fenómenos como o do "Big Brother"?

J.M. – Sim, mas esse é apenas um de muitos exemplos. Obviamente estes heróis, no imediato, são falsos heróis, o verdadeiro herói é sempre silencioso e reconhecido tardiamente. Os dos nossos dias não passam de caricaturas. São heróis para usar e deitar for a.

P. – E esta obsessão pelo sucesso começa quando?

J.M. – Os pais já educam os filhos para serem heróis. A verdade é que estão a fragilizá-los, porque quase de certeza eles não vão ser heróis. E esse problema reflete-se por vezes numa adolescência que não tem fim. E em depressões. Uma grande parte dos toxicodependentes são heróis falhados que só retomam a condição de heróis com a heroína. Ao usar a metáfora da "doença do herói" pretendo justamente sensibilizar mais pessoas e de alguma forma contribuir para uma pedagogia da saúde mental.

P. – Mas hoje quando se fala de perturbações mentais fala-se quase sempre em desequilíbrios químicos...

J.M.  – O que faz despertar o desequilíbrio químico são as condições psicológicas, os conflitos. As perturbações que aumentam em flecha são as de ordem psicológica e social. A terapia consiste em tentar ajustar a pessoa às suas condições, através da psicoterapia, ainda que possam também ser ajudadas com fármacos.

P. – E o que é que está a acontecer, a este nível?

J.M.- Atualmente, os medicamentos que mais se vendem, para além dos antibióticos e dos antinflamatórios, são os antidepressivos e os tranquilizantes. E o número de consultas de psiquiatria e saúde mental tem aumentado de forma substancial, basta ver que há 60 a 70 mil novos casos, todos os anos. Também o número de psiquiatras multiplicou-se por trinta, desde que eu comecei a exercer, enquanto o do médico se multiplicou por três. Além disso, há psicólogos clínicos.

P. – E o que pensa do crescimento exponencial da venda de antidepressivos?

J.M.- Há um exagerado consumo de medicamentos psicotrópicos, justamente porque os indivíduos, para serem heróis, andam à procura da "pílula da felicidade" e encontram sempre quem a disponibilize com a maior das facilidades.

P. – Isso é uma crítica aos médicos?

J.M. – A sensibilização para este tipo de problema passa por toda a gente, incluindo os médicos.

P. – Mas a "pílula da felicidade" parece resultar em muitos casos...

J.M. – Pode ser uma ajuda, mas nunca é a saída.

Alexandra Campos, Público, 2002-10-21 (adaptado)