Entrevista com Eglantina Monteiro
Tema principal: Culturas, identidade cultural
Pergunta – Existe a ideia generalizada de que é progressiva a homogeneização das culturas. Concorda?
Eglantina Monteiro – A ideia de que todas as culturas, por via da industrialização e dos meios de comunicação de massas, iriam perder as suas características próprias, tornando--se semelhantes ou equivalentes umas às outras, faz parte do pensamento hegemónico e autoritário do Ocidente. Ou seja, lá nas sociedades que resistiram ao contacto com os europeus, que não desapareceram – como aconteceu com os povos ameríndios que habitavam as costas das Américas ou com muitos dos habitantes das ilhas do Pacífico, entre outros genocídios promovidos pelo Ocidente –, a cultura local não foi pura e simplesmente substituída pelo sistema económico, pelas instituições políticas, pelas crenças e pelos valores do Ocidente. A realidade é muito mais complexa. Por exemplo, será que a introdução de relógios e despertadores mudou a conceção que os índios da Amazónia tinham do tempo? Será que eles o utilizam do mesmo modo que um operário ou um quadro de uma empresa de uma grande cidade o utiliza? O dia ficou compartimentado em horas de trabalho, horas de sono e horas de lazer? Será que o movimento do Sol, as estações do ano, a correspondência simbólica, com as suas inúmeras consequências práticas, a iniciação, o nascimento, a morte, os mitos já não fazem mais sentido? Estas mesmas questões se podem levantar relativamente aos objetos não ocidentais trazidos para o Ocidente. Por exemplo, os objetos de um culto africano ou oceaniano, uma vez no Ocidente, não são integrados no nosso universo religioso; transformamo-los em curiosidades, em documentos, em obras de arte, e assim os admiramos nos museus de história natural, nos museus de antropologia ou nos museus de arte. Atribuímos-lhes valores que eles não tinham originalmente. Reinterpretamo-los, projetamos neles os nossos valores e as nossas ideias. Enfim, podemos dizer que não é seguro que as ideias, os valores e as visões do mundo se propaguem tão depressa, e tão facilmente, quanto os objetos.
P. – Hoje em dia, fala-se muito em identidade cultural, contudo, temos dificuldade em apreender o seu sentido ou significados. Como define identidade cultural?
E. M. – Falar hoje de identidade cultural não é a mesma coisa que há 100 anos atrás, quando este conceito emergiu intimamente ligado à construção dos estados-nação.
A famosa “identidade nacional”, o ser do povo português, é uma noção mais ou menos essencialista, como algo que um grupo, ou um indivíduo, tem em si e por si, e que se transmite de geração em geração. Mas hoje vivemos num mundo interligado por múltiplos canais, num processo de interferências entre várias tradições culturais, o que não implica homogeneização global. A nossa identidade é multifacetada. Um indivíduo, ou um grupo, tem uma variedade de possibilidades. Cada um pode ser muitas coisas diferentes, e este sentimento plural está na base da emergência, um pouco por todo o Mundo, de grupos que reivindicam uma diferença cultural. Na Europa, os Curdos, os Bascos, os Irlandeses, os Checos, os Bósnios; no México, os Chiapanecos; no Brasil, os povos que habitam a Amazónia, a Rondónia ou o Acre. Estes e muitos mais parecem renascer de uma morte, ou da assimilação que a construção dos Estados modernos implicou. Estas distinções étnicas estão normalmente associadas com antagonismos entre grupos, com desigualdades de poder e de riqueza material, e só emergem de uma forma visível através da luta. Estes não reivindicam o passado, que, na maior parte dos casos, teve de ser reinventado, mas um futuro. Assim, neste contexto, a identidade cultural não parece ser mais a reprodução do passado, possibilitada simplesmente pela transmissão, de geração em geração, de hábitos, crenças e língua, mas a reconstrução, a reinvenção de si próprio, cultural, social e politicamente, no presente, o que implica a construção de uma ética social pluralista, muito distinta da ética assimilacionista e colonial.
P. – A socialização das crianças será um dos traços distintivos das culturas? O seu contacto com sociedades não ocidentais confirma esta ideia?
E. M. – Sim, a interiorização dos valores políticos, éticos, religiosos e estéticos, a ideia do Mundo e dos comportamentos corretos são fundamentais em qualquer sociedade, incluindo a nossa, claro. Por exemplo, entre os bijagós (os habitantes do arquipélago com o mesmo nome em frente à Guiné-Bissau), os homens, ao longo da vida, passam por 17 iniciações e as mulheres por 10. A cada uma delas corresponde um conjunto mais ou menos complexo, mais ou menos difícil, de práticas que têm a ver com o que um homem ou uma mulher, de uma determinada idade, devem saber e fazer. Cada classe de idade tem os seus saberes, deveres e direitos próprios, que neste caso se inscrevem no próprio corpo; as vestes, o penteado, os enfeites ou a ausência destes identificam o indivíduo. As práticas iniciáticas acontecem fora da aldeia, na floresta e, conforme o nível etário, podem demorar apenas algumas semanas ou então vários anos. Os homens aprendem a caçar, a dançar, a fazer música, a esculpir máscaras, a seduzir as mulheres, a construir canoas, a identificar as plantas curativas e as venenosas, aprendem a história do grupo e a construção do mundo. As mulheres também na floresta aprendem, nos seus rituais iniciáticos, entre outras coisas, a lidar com o sobrenatural e a orientar os mortos. Em Bijagós, o sagrado é assunto de mulheres.
In Monteiro, M., Ribeiro dos Santos M., Psicologia, Porto Editora.