Entrevista com António Amorim

Entrevista com António Amorim

Tema principal: Genética

 

P – Na aplicação dos conhecimentos a que chega, na sua dimensão mais prática, não trabalha conjuntamente com outras ciências?

AA – O trabalho em conjunto é muito difícil. A história humana é a demonstração dessa dificuldade. Os mitos bíblicos mostram que, mesmo quando éramos só dois, já havia problemas de relacionamento.

Na realidade, isso é um processo recursivo e nem sempre pacífico. A genética das populações, como é uma disciplina que está, na classificação positivista das ciências, na “casca da cebola” (embora haja disciplinas que se situam ainda mais no exterior; talvez esteja a ser, se calhar, excessivo nisto), repousa, para além da matemática que é o seu instrumento formal, basicamente nos resultados da biologia, da química e da física. São todos utilizados quotidianamente. Nem sempre os mesmos, e a relação é, também, um bocado dialética, ou seja, há também tecnologias que foram desenvolvidas (vamos chamar-lhes físicas), em resposta a necessidades postas pela genética das populações. Trata-se, portanto, de um processo que não é, de maneira nenhuma, linear.

P – E as ciências como a História, a Arqueologia…?

AA – Eu dividiria essa questão em dois pontos: uma é uma linha de investigação psicológica e sociológica e que procura bases genéticas para determinados comportamentos e variações individuais. A resposta que temos até agora é que, se tirarmos as variações claramente patológicas, isto é, aquelas que provocam doenças e que felizmente são raras, a variação interindividual é muito mais ditada por questões não genéticas do que genéticas. Muito mais não quer dizer tudo, ou seja, por exemplo, a nossa capacidade de distinguir sabores é condicionada geneticamente embora possa depois ser muito educada e muito influenciada pela educação, pelo tipo de alimentação que se tem, etc. A própria visão das cores também é diferente com base genética, mas nós, apesar de tudo, culturalmente, conseguimos alguns consensos, embora tenhamos bases genéticas diferentes. Nenhum de nós vê o vermelho de forma idêntica, contudo, arranjamos um certo consenso.

P – Reportando-nos agora à questão da evolução, e, mais concretamente, à evolução da espécie humana, quais são, na sua perspetiva, os principais erros que “rodeiam” esse saber e que são comummente divulgados, inclusivamente nos manuais?

AA – Não é possível falar em espécie humana e em evolução sem citar as outras espécies porque no próprio conceito de evolução está, mais ou menos implícito, se a nossa espécie terá origem noutra espécie. Poderíamos ver a evolução como mudança das espécies, mas a nossa continuava a manter a sua identidade, isto é, a espécie humana mudava de características ao longo do tempo, mas os factos, inclusive, geológicos demonstram que a espécie humana não viveu sempre e que houve espécies que já desapareceram. Portanto, o problema que se põe é como perceber isso. Para perceber isso é preciso, se estamos centrados nos humanos, entender que uma espécie, no sentido biológico, não é mais do que um conjunto de indivíduos que pode trocar informação genética com sucesso. Por exemplo, um burro e uma égua não conseguem fazer isso porque o híbrido daí resultante não é fértil, por isso não consegue transmitir informação genética à descendência. Connosco, com aqueles que atualmente chamamos humanos, isso não ocorre, todos somos potencialmente férteis nas relações que temos entre nós. Houve épocas, que estão documentadas biologicamente (ou geologicamente), em que coexistiram várias espécies humanas e agora utilizo a palavra “humano” no sentido não biológico mas de conjunto de indivíduos que detinham características que nós associamos à humanidade atual, nomeadamente a produção de cultura. É através dessa produção material que nós inferimos que esses indivíduos teriam de ser considerados, juridicamente, com os mesmos direitos que nós. Isso significa que há uma certa incongruência entre os conceitos de “humanidade” no sentido biológico e “humanidade” no sentido jurídico e social. A atual espécie humana é apenas uma das que já existiram.

Como é que estas espécies se foram diversificando? Ao contrário do que é vulgar explicar-se por aí, as espécies não se diferenciam por pequenas modificações que se vão acumulando ao longo do tempo, mas tudo começa por um isolamento reprodutor. Quando se faz isolamento reprodutor, então sim, é possível acumular de um dos lados do isolado algumas características e, do outro lado do isolado, outras características. Tipicamente, como os acidentes biológicos que dão origem à separação ou isolamento reprodutor vão ocorrer em muito poucos indivíduos, quer dizer que a espécie-mãe mantém uma grande diversidade, mas a espécie-filha, a nascente, leva uma amostragem muito pequena da diversidade genética que existia e é por isso, também, que os humanos atuais têm proporcionalmente, atendendo ao número de biliões de indivíduos que atualmente existem, muito pouca diversidade genética. Nós somos muito mais iguais uns com os outros do que aquilo que seria de esperar face ao efeito populacional. Porquê? Porque tivemos a nossa origem há pouco tempo e essa origem foi feita a partir de uma mão-cheia de indivíduos e por isso eles não puderam mostrar toda a diversidade do hominídeo anterior.

Nas narrativas de divulgação, a causa e o efeito da especiação estão invertidos.

Mas queria também chamar a atenção para que a noção de “evolução” é uma noção ambígua; conceptualmente, ela agora está ancorada à origem das espécies, não às mudanças simples das características de uma espécie como, ainda por cima, não acredito que seja um termo que alguma vez possa ser realmente científico. Ou seja, é um conceito venerável mas nem todos os conceitos veneráveis são cientificamente abordáveis. É como o conceito de “existência”; é um conceito sólido e respeitável, mas não passa pela cabeça de ninguém que uma ciência se dedique a esclarecer o mistério da existência. Toda a gente percebe que é uma coisa demasiado vaga, fluida e sem elementos analíticos que possibilitem uma abordagem científica moderna.

A evolução arrisca-se a ser o mesmo e poderíamos perder aqui horas a demonstrar porquê, mas aí já seria tecnicamente mais complicado.

Se vamos para a história das ciências, verificamos que a biologia atual está numa situação paradoxal, pois está a atacar coisas que são normalmente o “fim de carreira” de uma ciência “dura” e está a atacá-las primeiro. Se for ver a história da física, verificará, por exemplo, que Aristóteles, para explicar os movimentos e as posições dos corpos no mundo, usava um conceito que abarcava simultaneamente “massa”, “força”, “velocidade” e “aceleração” e ao qual ele chamava “o ímpeto”. O “ímpeto” explicava tudo… e assim verifica-se na física pré-newtoniana um símile da situação da biologia de hoje. Aristóteles dizia: os corpos tendem a ocupar a sua posição natural no universo. Como se os corpos tivessem uma tendência natural. E os meus colegas mais naturalistas também tendem a explicar a evolução a partir desse conceito vago e dizem que é a seleção natural que explica a evolução. Explica, nesse sentido de narrativa literária, mas não é científica no sentido moderno. E para ser científico moderno, o conceito de evolução vai ter que ser dividido em subcategorias, que vão ter conteúdos distintos.

P – É verdade que os europeus atuais descendem de povos da Península Ibérica?

AA – Os humanos atuais, aliás, a maioria das espécies humanas que já existiram, podemos dizer que, salvo um caso não muito bem esclarecido, pelo menos todas as que estão bem documentadas, nasceram em África; e a nossa espécie não escapou a isso, apesar de outras espécies humanas já se terem espalhado pelo planeta. Uma outra espécie humana que tinha o nome de batismo de homo erectus já estava espalhada pelo planeta quando nasceu a nossa espécie, outra vez, em África. E portanto, quando o homem moderno começou a expandir-se, não só encontrou acidentes geográficos e mudanças climáticas muito complexas como, ainda por cima, nalgumas situações, encontrou outros hominídeos a viverem nessas paragens. Por exemplo, há agora um romance enorme sobre o Neandertal… mas o que é relevante é que essas espécies todas não deixaram sinais na constituição genética atual. Nalguns casos, somos seguramente filhos culturais ou, pelo menos, parceiros culturais, mas não somos significativamente herdeiros genéticos. Tivemos um ancestral comum, mas depois tivemos percursos genéticos que não voltaram a ter mistura, tal qual como na metáfora do burro e do cavalo; eles também por vezes têm contactos, às vezes são criados juntos, mas não podem trocar o património genético.

A Europa, estranhamente, foi, do ponto de vista cronológico, um continente tardio, isto é, nós estávamos à espera que existissem contactos com África – ainda por cima, tudo isto foi antes da abertura do canal de Suez – e por isso estávamos à espera que a Europa fosse rapidamente invadida pelos humanos modernos. Por razões que ainda não conseguimos esclarecer muito bem, os humanos modernos chegaram muito mais depressa à Austrália do que à Europa. Algumas das razões serão de tipo climático, outras serão de tipo alimentar. É difícil, neste momento, reconstituir o que se passou, se houve breves ocupações que não tiveram sucesso, ou se este continente ficou mesmo vazio de humanos modernos até há qualquer coisa como 50 000 anos.

Quando eles começaram a colonizar isto, infelizmente, a Europa estava sob uma camada de frio muito considerável que só esmoreceu há cerca de 20 000 anos atrás. As únicas zonas que se crê não estarem cobertas permanentemente por camadas de gelo e por climas absolutamente inóspitos seriam as do Sul da Europa.

Uma das coisas que eu mais critico é a confusão que há entre os hominídeos que aqui existiram há cerca de um milhão de anos e os homens atuais que, do ponto de vista biológico, não têm nada a ver e, do ponto de vista cultural, no caso europeu, também têm muito pouco ou nada; tentar traçar uma linha de continuidade na evolução destas espécies é um absurdo. Não há nenhuma continuidade, não há nenhuma tendência para o ser humano, não há nenhuma linha de evolução predeterminada. Há acasos que vão tendo sucesso, ou seja, por outras palavras, ninguém vai dizer que os antepassados das focas, quando perderam os membros, estavam a ficar adaptados ao sítio onde estavam. Perder os membros forçou-os a mudar de vida: em vez de caminharem, passaram ao meio aquático. Com os humanos aconteceu o mesmo e nós não somos tão diferentes assim da outra bicharada.

Na Europa misturaram-se duas coisas (e isto complica muito a análise genética): uma vaga de migrações de este para oeste, que foi interrompida pelas glaciações, e quando o gelo se retirou (digamos assim, caricaturalmente), houve dois movimentos contraditórios: um, remigrações do Próximo Oriente voltaram a enxamear a Europa, mas também os refúgios onde tinham sobrado alguns humanos no Sul da Europa expandiram-se para Norte. Portanto, não se pode dizer que os humanos atuais da Europa são filhos exclusivamente de uma migração paleolítica do Sul ou, muito menos, da Ibéria; é uma mistura. Os humanos que habitaram a Ibéria há cerca de 20 000 anos atrás participaram no repovoamento da Europa, mas participaram ao mesmo tempo que a Europa estava, de novo, a ser invadida do Médio Oriente, em densidades demográficas consideráveis.

P – Para terminar, um pouco de futurologia. Será que é possível prever ou, pelo menos, dar-nos algumas linhas de orientação sobre o que será o futuro da nossa espécie?

AA – O futuro da nossa espécie, se fôssemos puramente cientistas, seria a extinção, porque todas as espécies de seres complexos de tipo sexuado (não se pode estender a microrganismos que têm outro tipo de reprodução) têm um tempo finito. Isto é, são um “baralho” de informação genética que, ao fim de uns milhões de anos, acaba por não sobreviver; a vida (ou a tal evolução) é cega e, portanto, nós estamos permanentemente a gerar no nosso seio coisas que são o embrião de novas espécies. E é por isso que eu digo, “se fôssemos meramente cientistas”, isto é, se não tivéssemos outros cânones e outros valores. Nós, periodicamente, estamos a observar indivíduos que têm uma constituição genética distinta da nossa, porque houve um reempacotamento dos cromossomas. Isso quer dizer que esses indivíduos têm problemas, muitas vezes não têm nada externamente que os distinga de nós – são absolutamente normais – mas têm uma informação genética – a encadernação da informação genética – que é feita ou arrumada de forma diferente. Qual é a consequência disto? Não conseguem reproduzir-se eficientemente. Portanto, se nós imaginarmos que isto está sempre a ocorrer e que pode ocorrer simultaneamente em dois indivíduos que, por acaso, se cruzam e têm descendência, os filhos deles são o embrião de uma nova espécie, porque reúnem agora de uma forma dupla aquilo que estava em desequilíbrio nos progenitores e são os potenciais fundadores de uma nova espécie. O que é que acontece hoje em dia? Nós prevenimos isso; impedimos isso, quase. A vigilância médica é uma dessas formas mais eficientes.

Há indivíduos que têm manifestamente síndrome de Down que, em vez de serem causados por três cromossomas 21 (em vez de dois – outra coisa desagradável na genética é que ter mais não é necessariamente bom…), têm dois cromossomas 21 e depois têm um outro cromossoma mais comprido e quando vamos analisar as características que estão codificadas nesse pedaço a mais, vê-se que é material do cromossoma 21.

Há muitos indivíduos por aí que são portadores desta fusão, que criaram um “livro” maior, têm menos cromossomas do que nós, mas que exteriormente são normais. Mas, quando algum desses indivíduos é detetado, é evidente que há logo um forte aconselhamento médico para prevenir a sua reprodução ou, se ele quiser reproduzir-se, vigiar a gravidez de maneira a que não se transmita nenhum acidente cromossómico. Portanto, neste momento, nós estamos a controlar a nossa evolução, estamos de facto a impedir a evolução no sentido da criação de novas espécies.

Portanto, do ponto de vista biológico, as espécies sexuadas são, em si mesmas, transitórias. Enquanto estivermos dentro da mesma espécie, não pode haver grande evolução; só pode haver reprodução se nos mantivermos no “molde”, porque, como a reprodução é sexuada, nós somos obrigados a manter compatibilidades. Portanto, para ter saltos evolutivos, nós necessitamos de um brutal isolamento reprodutor. As diferenças só se acumulam e só se tornam importantes quando é feita uma barreira que no início é só isso. É impossível pensar, em modos logicamente coerentes, numa evolução gradual por acumulação de pequenas diferenças, o que daria origem a um continuum de evolução.

In Reis Lima, M.ª do Rosário, Leite de Castro, M.ª João, A Psicologia e a Vida, Psicologia A 11.º ano, Porto, Porto Editora

Texto convertido pelo conversor da Porto Editora, respeitando o Acordo Ortográfico de 1990.